segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Uma outra princesa descalça e, um rei na praça!

Era um outro agosto, mas não consegui me livrar deste desgosto:
I
     Aí era um dia depois do depois do 5º dia útil de um outro agosto...  As liquidações de inverno já haviam começado... E a cidade não havia sossegado... As moças das lojas já estavam na porta, oferecendo um lindo sorriso e um lindo cartão, enquanto um rapagão anunciava a melhor promoção!  Eu tinha escapado ilesa da pororoca de gente do Calçadão. Eu tava lá, cheia de pastas e sacolas, coisas de casas e coisas de escola...Eu tava lá, no Largo que tem nome de riacho e também é Praça eu acho...
     Ah! Cê não sabe nem que Largo nem que praça é essa...  Aquele (a), que de um lado fica um montes de lojinhas e entradas para o shopping que tem nome de fábrica...  e  do outro, a Avenida do Barão prestes a se encontrar com a Rua dos Andradas, parentes do democrata, eu acho!Pois...  
    Eu tava lá... Os moradores do condomínio Monumento às Forças Armadas já tinham se debandado, indo cavar a sua vida dura e, o pão recheado de amargura, que nem aquele “o não sei o que digo” quer amassar nem tampouco degustar!O ponto de ônibus estava lotado e o trânsito engarrafado! Passeata agora cedo? Acidente com irmão do Alfredo?  Não sei... mas sei que eu tava lá e ela também! Ela? 
    Uma linda moça negra! Uns restos de mega-hair maltratados, uns restos de vestido curto estampado e os pés secos, magros e descalços... E dançava! E sorria! Que idade tinha? De onde vinha? Não sei! Só sei que dançava uma música que só ela ouvia, e executava uma coreografia de sua autoria...  Me jogou um beijo e  me saudou:
     ─ Oi, tiaah!...

II
      Tiaaah? Que menina era, das muitas a quem encontrei, das muitas a quem ensinei? Daiannah Aparecida ou Sthephanny Cristina? Nome difícil, família difícil, vida difícil... Que menina era aquela?  Ele me esclareceu. Ele? O andarilho mais gentil daquele point.                     ─ Aí, princeeesa! Que beleeeeza!
     Ah! Ela era  mesmo um membro da realeza... A das ruas – que reina com o sol do dia e reina à noite, com a lua...E eu tava lá... Eles também e agora tinha muito mais gente... Não sei se esperando o coletivo ou assistindo ao baile da corte local...Porque, de repente... Ele deu um salto, um rodopio e, em gestos galantes, tirou a dama real para dançar e formaram um lindo par... Rodopia pra lá, rodopia pra cá numa valsa que  ninguém mais ouvia. A platéia embevecida estava quase a aplaudir, quando gritos se fez ouvir
     ─ Graciqueliiih! Sua safada! Que piiinnn... é esse aí? Sua piiiinnn...! Tá pensando que sou piiiinnn, sua piiinnnnn!
     Que gritos eram? De quem eram esses gritos?? Era de um cidadão, morador do condomínio da Praça ou, um membro alijado da realeza e da diversão. Sei que se instalou a discussão, entre a dama, o cavalheiro e o ofensor, mais os executivos do escritório de negócios paralelos e informais, que funciona na esquina do Largo, bem perto da banca e das cabine dos meganhas.
     Ah! Agora cê se situou? Pois é... A discussão se ampliou e já ia já virar agressão, quando por instinto de mãe e de mulher, eu gritei:
     ─ Meu Deus, acode! Eles vão bater nele
     ─ Ah! Não vão não! – atalhou um cidadão que estava ao lado e eu nem tinha reparado! Era um senhor de meia- idade, bem fortinho e bem malhado, parecia ter sido soldado...
Também descalço!  Cheio de autoridade de guardião da cidade, o rei do pedaço:
      ─ Ah ê! Ah ê! Circulando! Po parar! Po parar! Todo mundo vazando...

III
     E vazaram e  circularam mesmo!  Cavalheiros obedientes, vassalos cabisbaixos e, a princesa indo retocar a beleza nuns restos de espelhos entre restos de zelos! Sim! Agora  eu me lembrava: Gracy Khelleyn. É assim que se escrevia no tempo que lei para isso não havia, para frear a paterna imaginação e o desvario do escrivão! Assim se chamava a princesa descalça.Mas mal tive tempo de me dar ao direito de identificar, de perguntar:─ Que  destino triste era esse que me fazia reencontrar essa menina de nome difícil, família difícil, vida difícil morando na rua?Ela já também estava circulando acompanhada do rei, que a levava pelos braços, em passadas largas e meio a sentença de uma senhora, desculpe..., uma cocoroca*:
       ─  Agora vão encher a cara de pinga e de droga, lá na Praça da São Sebastião!...
      Era um  outro agosto... mas ainda não me livrei deste desgosto! De rever a linda menina Gracy Khelleyn, de lindas trancinhas enfeitadas de tererê, a quem eu ensinei a ler e a escrever... Perdida nas ruas e agora, sem saber aonde ela vai dormir ou dançar. Porque tudo ficou mais difícil, além do que já era difícil, assim para ela?E senti um espinho no coração, ao ligar a televisão, para ver o jornal do meio-dia e meia... 
     E vi! A Érica mostrava o estado das praças do Largo e a da São Sebastião. Aliás, de todas as praças da cidade, na mais pura verdade – um monte de lixo e de droga, alguns rastros  de andarilhos e crianças misturados às fezes de um cão! Miséria, sujeira e confusão!
     Queira Deus que Gracy Khelleyn não esteja lá mais não! Que o Rei dos Reis a tenha livrado desta,  lhes dado salvação, casa comida e lugar para descansar depois de dançar, em paz: para esta e outras princesas da rua e para esse e outros reis do pedaço, que afinal lembrei: era o seu irmão... Agora, e as praças? Tanto deles como delas, nós temos que cuidar, ensinar e denunciar!!

*¹Expressão popular para senhora idosa ranzinza.
*² Expressão popular,nos anos 60 e 70, para designar policiais e militares


Izabel Cristina Dutra – reescrito em JF, 18/08/2011

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