domingo, 20 de novembro de 2011

Aqueles dias 99%




 ... Então...  Novembro vai passando... E hoje, ela veio... Aquela chuva forte, rápida de lavar a natureza e as almas viventes... Dia do Salve, ó lindo*! Véspera do Dia da Consciência... Aí então percebo que mais uma vez estou em alguns daqueles dias 99%... Que dias são esses?...
Aqueles dias de 99% indignação e 1% inho... Comemoração!  
     Então é novembro passando com tudo que 99% parece bem e 1% parece mal! E é justamente esta porcentagenzinha que faz ferver a porção que herdei de Maria da Cruz, minha bisavó materna... Então qualquer fato de injustiça me faz chegar ao máximo e se não puder agir e falar, eu escrevo... 
     Pois é...  Esses dias bem que poderiam ser de 100% comemoração...  Afinal aniversário de: Val, minha amiga (16); Beto, meu irmão (19); Evanice, minha sobrinha (20) e Juca, meu amor (22)! Dias que uma amorosa convicta jamais deixaria de comemorar... E mais, entre outras datas, o Dia da República (15); o Dia da Bandeira Nacional (19) e o Dia da Consciência Negra (20)! Datas em que uma patriota democrata da raça negra e da cor parda*¹ não ignoraria! Inda por cima às vésperas do Natal!... Mas aí reside o pequeno todavia, porém contudo... Esta porcentagenzinha de incômodo que aos poucos vai crescendo, crescendo... A cada sentimento, a cada palavra e a cada cena... 
     Sim!... Uma cena levantou as cortinas da vida e deu um choquinho de realidade, na minha 99% intenção de comemorar... Foi ontem... Era quase meio-dia de um dia frio e chuvoso de final de novembro.  E lá se vai a primavera! E lá vou eu, no 602, rumo ao HU*², com trilha sonora particular de canto de sabiás, para mais uma visitinha ao meu cardiologista. Como andava meu coração? Eu ainda não sabia, mas nem precisava porque na próxima esquina saberia que ele ainda é capaz de segurar os trancos da vida real... 
     Na próxima esquina, no ponto de  ônibus  perto da minha escola,parou porque um camburão da PM estava atravessado, enquanto alguns meganhas*³, digo, Srs. Policiais "tavam dando uma busca" em três rapazes – negros, bonezinhos irreverentes e visual de funkeiro – três rapazes brasileiros! 
    O que eles tinham feito? Qual a razão da abordagem?  Eu me assustei com aquela cena pesada para este lado 99% tranqüilo da cidade. Eu sei que muitas dessas cenas se repetem em vários pontos e bairros. Sei que às vezes há realmente 99% de motivos e que também há 99% de  exageros de autoridade... 
     Todavia... Por que exatamente estavam sendo revistados, tão acintosamente? Num ímpeto, eu me levantei e tentei abrir a janela... Outros passageiros fizeram a mesma coisa... E quase num coro ensaiado, exclamamos: 
     ─ Que é que é isto?!! Alguns ensaiaram passos pra descer, porém um dos soldados, que parecia o comandante da ação, fez sinal pro motorista passar e acelerar... E aí nós tivemos que nos aquietarmos. 
     Contudo o meu coração estava acelerado e posso assegurar que de muitos também... E no próximo ponto, levamos um novo sacode porque  havia muitas  senhoras, que entraram apressadas, falavam alto e estavam 100% com raiva: 
     ─...Mas, eu não vi eles fazendo nada demais... 
    ─ Se fosse bandido mesmo, eles não vinham... 
     ─... O de bonezinho preto e vermelho é vaporzinho e chincheirinho... Eu conheço... 
    ─Anteontem, eles não vieram e meu primo foi morto perto de casa... 
    Ouviu-se um Ah!!! Geral... E alguém gritou, com mais raiva:
     Esses... pin... filhos de uma...pin! 
    E um outro alguém, 99% preconceituoso de plantão, retrucou: 
     ─ Qual é... Oh... Só de ver a pinta deles já se sabe que é tudo filhote e aprendiz de bandido... 
     Um debate acirrado já ia se instalando quando uma freada do condutor, tentando desviar de uma moto desviou o ponto de discussão para “esses motoqueiros imprudentes”!   
     Ainda tentou-se retomar o debate étnico... Todavia, porém e contudo, no resto da viagem, um silêncio quase que tácito tomou contas de todos.Nada se ouvia nada, a não der um tuc-tuc de corações desgostosos e estalar de línguas afiadas porém reprimidas. 
     Quando desci naquele ponto... Aquele em que um nó de veículos faz parar 100% do tráfego da área, em quase todas as tardes... Aquele perto daquele colégio... 
     Então... Quando desci lá e subi o escadão que leva ao ambulatório do HU, parecia que as pernas não obedeciam a minha vontade de chegar, 99% a  mais do que tem desobedecido nos últimos meses... E o coração me veio à boca, com um gosto amargo!   
     Chegando lá, até que não esperei muito, pois lá é um dos últimos nichos de organização da saúde municipal. A consulta foi boa e o Dr. Adilson°, médico residente me atendeu bem e depois o Dr. Girardi**, que é um dos poucos que honram a farda – quer dizer o uniforme  - veio na sala me cumprimentar e, aí trocamos a informação de que ele era também cardiologista do meu marido. E aí, conversa vai e conversa vem, confirmou-se o diagnóstico: meu coração está 99% firme e 99% forte e pronto para outras... Que outras? 99% boas e 1% más... Ou vice e versa?! 
     Quando desci do HU, retomando o árduo trajeto para casa, a lembrança daquela cena e o fato de não ter podido fazer alguma coisa me indignou. A ponto de que  quando me dei por mim, estava no Pirulito+. 
     Ainda por cima, ainda no ônibus, fiquei sabendo que era essas buscas serão  rotina em JF! E foi em estado máximo de indignação, que não podendo reagir nem falar, liguei o computador e escrevi e reescrevi!...    
     Pois é... Caros amigos e vizinhos... Novembro vai passando e as festas da pátria também. As do fim de ano vão chegando devagarzinho... 
     Vamos comemorar  mas que nossos corações estejam 100% prontos para  nos indignarmos e reagirmos, pois outras dessas cenas podem nos surpreender em plena festa! Pois apesar de mais de 40% da população do país ter se encorajado e declarar-se preto ou pardo e da raça negra, a exclusão e o racismo ainda explode todos os dias, rotineiramente na nossa cara! 
    Apesar de já termos ao menos, 99% um dia ou uma semana de debates e comemorações do dia da Nossa Consciência, ainda há uma porcentagem considerável dos que ainda acham que uma rodinha de rapazes negros, irreverentes  e funkeiros está necessariamente sob qualquer suspeita! E que não há presunção da inocência para eles.
     Aí, o que você faz se não puder reagir ou falar na hora H? Escreve, reescreve e publica!!    
    A escrita foi inventada para que 99% da humanidade não ficassem calados por causa de 1% de repressores e ditadores, que querem excluir 100% dos nossos direitos! E a reescrita para apurar a raiva e transformá-la em indignação, sentimento nobre de quem não quer injustiça nem para os seus, nem para os meus e nem para os nossos!
Izabel Cristina Dutra - escrito e reescrito em JF, entre 18 e 20/11/2011 
 * Salve, ó lindo - era assim que as crianças do meu tempo chamavam o Hino à Bandeira Nacional.
*1 - Esse modo de me definir aprendi com uma bela moça negra na TV, na época do censo 2010.
*2 - Setor ambulatorial do Hospital Universitário que ainda permanece no bairro Santa CArina em JF.
*3 - meganha - gíria dos anos 60 e 70 para se referir a policiais e militares.
+ ver crônicas No Pirulito... neste mesmo blog.
** Dr.José Marcos Girardi - médico cardiologista do HU e do PAM, em JF
° Dr. Adilson Octaciano de Oliveira- idem